Abolindo a Virgindade
Quem é que nunca sonhou em estar em um lugar completamente virgem, em contato total com a natureza, sem pensar nos problemas mundiais e pessoais (que sempre são tantos!), sem nenhuma interferência humana, a não ser a sua própria? E quem é que em certas situações não julgou estar realmente em tal lugar? Mas... o que estamos querendo dizer exatamente com "virgindade", neste caso? Pensando nas florestas tropicais, mais exuberantes e chamativas, que sempre nos trazem uma certa paz interior. Floresta virgem seria o mesmo que floresta primária? Sem distúrbios? Remota? Natural? Madura? Ou simplesmente antiga? Vamos examinar esta questão com calma. Para começar, a idéia da falta de distúrbios normalmente se refere à não intervenção humana, ou melhor, à falta de conhecimento nosso sobre isso. Dizer enfaticamente: "esta floresta é intocada por seres humanos" é algo realmente problemático. Os impactos humanos foram tantos historicamente (desde que o homem existe), e continuam tão intensos atualmente, que a comunidade científica está de acordo que florestas realmente virgens, ou intocadas pelo homem, provavelmente não existem (principalmente nos trópicos).
Qualquer ser vivo interfere no seu entorno, desde o momento que inicia sua vida. Basta começar a respirar, por exemplo. Aí entra a idéia de "engenheiros ambientais", que seriam aqueles organismos que direta ou indiretamente modificam a disponibilidade de recursos para outras espécies, através de mudanças físicas de materiais bióticos e abióticos. Fazendo isto, eles modificam, mantém e / ou criam habitats. Este é um conceito interessante, mas estamos modificando, mantendo e criando habitats constantemente. E isso é válido para cada ser vivo neste planeta. Um bom exemplo de mudança radical causada por seres vivos na atmosfera, no clima, enfim, no habitat da terra, foi o surgimento e proliferação dos primeiros seres autotróficos. A questão é que os seres humanos desta nossa sociedade entraram num grau de transformação do ambiente absurdamente enorme, de maneira muito rápida, causando transformações profundas e em muitas vezes irreversíveis. A queima dos combustíveis fósseis é o exemplo clássico. Mas seria a primeira transformação acima um processo natural e a segunda, artificial? Ou ainda, uma boa e a outra ruim? Neste ponto devemos nos perguntar: o que é natural? Qual é a definição exata de natureza? Tudo aquilo que não é feito pelo homem? Mas o homem não faz parte da natureza? Não é um produto "natural" da evolução? Enfim, o homem é natural. E ele tem desejo de fazer e realizar algumas coisas. O que é natural. Só que muitas delas tem conseqüências desastrosas para as outras espécies. A não ser as oportunistas, como ratos, baratas, moscas, capim gordura etc. É o que se chama de "desequilíbrio ecológico". Ou "desequilíbrio da natureza". Esta idéia de "equilíbrio" ainda leva a outra discussão, mas fica para uma próxima oportunidade. Assim começamos a entrar no terreno da ética. Sim, o homem é natural, modificando muito seu ambiente ou não. Mas ele precisa estar feliz, ou seja, sobreviver com bem estar no planeta Terra. Em outras palavras, precisa realizar uma "felicidade sustentável". Enquanto a sustentabilidade econômica estuda como produzir e consumir ao longo do tempo de maneira sustentável (em outras palavras, perpétua), a felicidade sustentável tentaria encontrar o equilíbrio entre o maior número de pessoas e seres satisfeitos vivendo em conjunto, a fim de que a perpetuação de cada espécie seja possível. Isto deve ocorrer em dois eixos principais: 1. presente - futuro (ser feliz de maneira a conciliar o desejo no presente sem prejudicar o futuro, mas não viver o presente infeliz preso nos desejos futuros) e 2. indivíduo - sociedade (a felicidade individual em complementação à do grupo e vice versa, buscando sempre um meio termo). Ambas faces desta sustentabilidade têm relação direta com os dois extremos possíveis da relação humana com o planeta: ser feliz agora e consumir tudo que satisfaça seus desejos, no sentido mais amplo da palavra, resultando em infelicidade ou "insustentabilidade" futura e prejudicando o grupo. Ou não consome nada no presente pensando na sustentabilidade futura, mas é infeliz agora enquanto deixa o planeta "bem". Claramente, é preciso buscar o equilíbrio, mais uma vez, e sempre. Entende-se por equilíbrio aqui um meio termo entre estes extremos. Torço para que a humanidade como um todo deixe de ser inconseqüente e tão pouco inteligente na maneira que vem buscando realizar seus desejos... Nós, "ecologistas" ou apenas pessoas preocupadas com o futuro do nosso planeta, precisamos agir, se acreditamos realmente que nossa forma de viver "sustentavelmente" é a mais coerente. A meu ver é razoavelmente simples, pode soar meio clichê, mas basta cada um fazer a sua parte, agindo localmente e pensando globalmente. Em busca da sua "felicidade sustentável". Não importa se aquela exuberante floresta antiga já tenha sido um ambiente completamente diferente, ou que aquela outra floresta menos exuberante esteja ainda nos estágios iniciais de sucessão, regenerando-se. Precisamos manter o equilíbrio dinâmico entre o que consumimos e o que produzimos, e ainda, o que preservamos. Divagações e reflexões à parte, no sentido mais prático da conservação, o que nos resta é tentar manter essas florestas antigas, importantíssimas como reservatório de informação genética / evolutiva e recuperar áreas degradadas; deixar a regeneração natural trabalhar em campos abandonados próximos a florestas mais antigas, através principalmente da dispersão de propágulos, da chuva e do banco de sementes; monitorar as influências das mudanças climáticas, que estão aí, e torcer para que elas não tragam conseqüências muito drásticas em longo prazo, por que estas sim, me parecem modificações inevitáveis e importantes. |
Branca
M. O. Medina - branca@biologo.com.br
Bióloga licenciada e bacharel em ecologia pela UFRJ
e mestre em ecologia, conservação e manejo da vida silvestre
pela UFMG.
Leitura
sugerida:
Brown, J. H. 1995. Organisms as engineers: a useful framework for studying
effects on ecosystems Trends in Ecology and Evolution 10: 51-52.
Clark, D. B. 1996. Abolishing Virginity. Journal of Tropical Ecology
12: 735-739.
Laurance, W. F. et al. 2004. Pervasive alteration of tree communities
in undisturbed Amazonian forests. Nature 428: 171-175.
Contei com a colaboração fundamental de Luis Carlos Lopez.