bocadomangue Mario Moscatelli

ZONA DE GUERRA

Eram umas onze horas da manhã, quando meu celular tocou. Do outro lado o Fábio me solicitava com pronunciamento lacônico que eu sem falta viesse à área de plantio. Indaguei o que estava acontecendo, por que da urgência, mas a resposta era a mesma, isto é, que eu não deixasse de aparecer o mais rápido possível. Diante da situação me preparei e logo após o almoço, fui em direção à baía de Guanabara.

Aproveitando o caminho percorrido, antes de me encontrar com o Fábio, parei numa outra área de manguezal em processo de recuperação sob minha tutela.

Olha daqui e dali, tudo bem, mudas crescendo, taludes estáveis, cercas sendo instaladas, evitando a chegada de resíduos de todos os tipos, quando "ops", perguntei ao Rodrigo o que era aquilo que boiava no rio, e de forma singela a resposta foi, mais um boneco!

Para quem não sabe, defunto, presunto, boneco, dá tudo na mesma no linguajar popular e lá estava mais um boiando solitário, inchado, sem cor, rumando em direção às águas da baía de Guanabara, o grande cemitério dos perdidos e dos abandonados.

Me senti vazio, vendo junto ao lixo e ao esgoto que diariamente é vomitado pelos rios que deságuam na baía aquele corpo boiando.

Apesar daquilo, toquei meu caminho, pois estava preocupado com a situação na segunda área. Chegando lá, fui recebido e conduzido junto ao sistema de cercas que temos instalado nos últimos doze meses, visando impedir que o lixo invada as áreas de plantio. Foi quando o Fábio começou a me mostrar os avanços da semana e o principal problema que havia impedido maiores melhorias nas áreas de plantio, mais um "boneco" encalhado nos manguezais do lado de fora da cerca. Em estado de putrefação o mau cheiro impedia qualquer atividade nas redondezas. Custei a formatar aquela imagem. Pensei que era um sofá, de tão inchado que o corpo estava, apenas entendendo que aquele era um corpo de um ser humano apenas após de ter conseguido individualizar uma das pernas.

Foquei a vista sem querer e ao mesmo tempo querendo encaixar aquela imagem grotesca que progressivamente tornava-se mais grotesca quando eu conseguia observar caranguejos se alimentando das vísceras expostas.



Confesso que me impressionei com a minha frieza e com o imenso vazio que havia crescido mais ainda desde o primeiro "boneco".

Continuei a vistoria nas áreas de plantio, fui informado que a polícia já estivera de manhã no local e que enfim, era mais um corpo rejeitado pelas águas da baía, entulhado como lixo nos manguezais e servindo de alimento para a teia alimentar.

Voltei para casa, mais triste e vazio.

Sinto-me uma criatura profissionalmente privilegiada, por poder estar nos lugares onde estou, mudando de fato e não só nos discursos proferidos em palestras e simpósios com ar condicionado e coffee break, a realidade ambiental de áreas arrasadas ambientalmente, numa verdadeira zona de guerra. Sem dúvida o tal meio ambiente se burocratizou, anda excessivamente de salto alto e usando em demasia ar condicionado.

O cheiro das áreas arrasadas durante os períodos de maré baixa, onde a mistura de amônia, gás sulfídrico, metano e a decomposição de todos os tipos de resíduos, criam a silenciosa sinfonia da barbárie ambiental que paulatinamente tentamos e na maioria das vezes conseguimos reverter localmente, nos pontos onde os projetos são efetuados. No entanto quando você vê do alto seu "gigantesco" esforço, o mesmo mostra-se efêmero, um pingo num oceano de degradação.

Aproveitando o final de mais esse artigo, gostaria de informar aos leitores que:

Mais uma vez desde o sábado passado (06/09/03) até a quarta-feira (10/09/03), nossa querida Lagoa foi palco da "ópera da eutrofização", por esgoto proveniente do canal da General Gárzon, bem na direção da elevatória da CEDAE que hoje (11/09), estava recebendo um verdadeiro "sacode" de máquinas da referida estatal. É bom informar que a estatal, segundo o Jornal O DIA, não tinha conhecimento de nenhum vazamento!

E finalizando, gostaria de desmentir categoricamente as informações que o arquiteto de nome Paulo Casé anda espalhando em alguns meios de comunicação. Esse cidadão tem afirmado que o manguezal da Lagoa impede a visibilidade do espelho dágua. Informo aos interessados que o manguezal é periodicamente podado e que apenas em alguns pontos o mesmo é deixado sem poda, visando abrigar avifauna no pernoite e nidificação.

Engraçado como algumas pessoas se incomodam tanto com o manguezal e não levantam um dedo contra o despejo periódico de MERDA que acontece na Lagoa. Desde que dê para ver a água, esteja com MERDA ou não, isso não interessa. É mero detalhe estético, melhor dizendo, plástico.

Haja saco...

MARIO MOSCATELLI - Biólogo - moscatelli@biologo.com.br

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