bocadomangue Mario Moscatelli

Basta de preservar a degradação

Enquanto as nuvens da semana passada, nesta verdadeira roleta russa ambiental, escolheram a baixada Fluminense para reverter suas águas, outras baixadas e favelas ficam na bola da vez, esperando que as nuvens escolham a baixada do vizinho para mostrarem a cada verão a incompetência técnica e a falta de compromisso com a vida humana de nossas auturidades ambientais.
Neste contexto apresento aos leitores um novo texto escrito para a revista da câmara de comércio Brasil - Estado Unidos, que vem bem a calhar nessa bagunça que se tornou o gerenciamento do meio ambiente no Estado do Rio de Janeiro.
Não existem muitas dúvidas que em resposta a uma lenta e progressiva conscientização por parte de parte de nossa sociedade, inúmeros dispositivos legais vêm sendo criados e alguns outros tantos aprimorados, conforme a dinâmica que envolve os problemas de ordem ambiental.

Sua aplicabilidade, no entanto, continua sendo um problema sem solução, por um lado diante da ação das políticas e da burocracia de vários órgãos públicos, muitas vezes de natureza kafkaniana, onde se ficar o bicho pega, se correr o bicho come, e por outro pela falta de aplicabilidade no campo da realidade de alguns dispositivos legais diante da complexa realidade ambiental.
Por outro lado, a romântica visão preservacionista, presente em textos técnicos do passado, em alguns textos legais do presente e no discurso inflamado de alguns ambientalistas, que muitas vezes apenas reclamam e tumultuam, sem indicar caminhos factíveis para a resolução dos problemas emergenciais, mais uma vez não tem mostrado na prática o resultado esperado, isto é, proteção dos recursos naturais da forma abrangente como nós gostaríamos.

Um dos motivos para essa frustração de resultados práticos se deve a falta de políticas ambientais claras com começo, meio e fim, e menos orientadas por interesses político-partidários, corporativistas e clientelistas desse ou daquele grupo momentaneamente no poder. Há muito tempo, as questões ambientais, são o verdadeiro samba do crioulo doido, onde associado à falta de um conjunto de diretrizes claras, soma-se o sucateamento das instituições teoricamente responsáveis pela materialização das diretrizes que também não existem, como já mencionado. Deixo claro que o tal sucateamento institucional varia desde a falta de infra-estrutura operacional como a marginalização moral e salarial da matéria prima dessas instituições, seu corpo técnico.

Mas isso vem de longe, visto que dentro de uma ótica onde questões ambientais são um empecilho para os chamados desenvolvimentistas míopes e assistencialistas defensores do lema "Só Jesus Salva", o sucateamento das estruturas que representam a política e a proteção dos recursos naturais, mostra-se uma prioridade em seus inconfessáveis objetivos particulares imediatistas. Tal atitude acaba gerando monstros ambientalmente inúteis e poços sem fundo com os recursos públicos perdidos tal como vem se materializando há anos, no Programa de "Despoluição" da Baía de Guanabara.

Analisemos sucintamente a situação de algumas unidades de conservação presentes na região da Baía da Ilha Grande, que são o reflexo do casuísmo político no ato de suas criações. Em estudo dentro do Programa Nacional do Meio Ambiente com apoio do Banco Mundial, desenvolvido em 1997, visando à criação de um "Programa de Gestão para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia Contribuinte à Baía da Ilha Grande", das cinco unidades de conservação locais analisadas, totalizando aproximadamente 160.000 hectares de áreas teoricamente protegidas, nenhuma delas contava até então, com plano diretor, sendo sua implantação no "mundo real", classificada pelo estudo como incipiente. Provavelmente o quadro deve ter mudado muito pouco. Alie-se a isso a verdadeira loucura de superposições legais que mais uma vez na prática não geram os resultados esperados, onde no mundo da teoria do não poder fazer nada intimamente associado com a falta de infra-estrutura fiscalizatória e planos de gerenciamento, impera no mundo real o poder fazer tudo e de qualquer jeito.
Exemplo clássico dessa situação eu presencio diariamente nos manguezais da Baía de Guanabara, onde pelos inúmeros dispositivos legais em vigor, o mesmo é intocável e inviolável, uma verdadeira virgem. No entanto seja pelo aporte de lixo, de resíduos químicos, esgoto, sedimento ou pelo seu direto aterro visando à instalação de lixões e favelas, os mesmos diariamente são aniquilados, sem que saíamos de nossas confortáveis retóricas preservacionistas, apresentadas em ambientes refrigerados e bem comportados, completamente diferentes do caos que impera não só nos manguezais como em nossas lagunas, transformadas criminosamente pela ação e omissão do poder público, em depósitos de lixo, esgoto e metais pesados.
Mas enfim, isso não é novidade para ninguém, pelo menos nos últimos quatrocentos anos onde tem imperado na prática da cultura brasileira a filosofia exploratória do pau-brasil, de usar até acabar.
No entanto, quero indicar um caminho possível para revertermos esse caos. Para mim é muito claro que a sociedade não pode mais depender da vontade momentânea desse ou daquele governante ter sido um aluno ao menos interessado em assuntos de meio ambiente. Precisamos no atual estágio de colapso de inúmeros recursos naturais estratégicos, tal como a água, de uma forma gerencial inexistente nas estruturas públicas na medida que a situação exige para a resolução de nosso caos ambiental.
Neste contexto, lanço a idéia da transferência administrativa das unidades de conservação bem como de recursos naturais teoricamente protegidos, para a gestão da iniciativa privada. Esta gestão terceirizada seria por um determinado número de anos, a ser definido caso a caso pelo poder público concedente e fiscalizador de fato, nessa nova divisão de tarefas. O poder público por sua vez transferiria o ônus do gerenciamento sustentável dessas áreas para os interessados no uso dos recursos dentro de parâmetros mais conservacionistas na prática do que preservacionistas só na teoria.
Enquanto não agregarmos valor aos ecossistemas ambientalmente vulneráveis por meio de atividades que não os degradem, desenvolvendo atividades econômicas que transformem as unidades de conservação e demais ecossistemas protegidos em ativos e não em eternos passivos, continuaremos nos lamentando de nossa incapacidade gerencial dos recursos naturais em claro processo de colapso numa sociedade cheia de demandas não preenchidas pelo poder público.
Agora é a hora de mostrarmos que aprendemos alguma coisa com quatrocentos anos de degradação. Amanhã, já será tarde demais.

MARIO MOSCATELLI - Biólogo - moscatelli@biologo.com.br

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